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Coisas que saem na urina

Na Polícia Militar, mulheres negras sofrem duas vezes mais

Por Ana Flávia Pilar
28 de junho de 2021
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“Se você fosse branca, da bunda grande, você até teria alguma coisa comigo. Mas você não vai, você é preta. Você não tem estabilidade.” Essas palavras nunca saíram da cabeça de Marta Maria Gomes, 52 anos, tenente da reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, assistente social e especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense. Quando ainda estava há poucos meses na PMERJ, ela recebeu uma licença médica de alguns dias porque a filha precisou ser internada. O superior de Marta, na época um suboficial, não permitiu que ela acompanhasse a bebê. 

 

A tenente disse à reportagem que as mulheres são vítimas “quase que de tortura” dentro Polícia Militar. As mulheres negras, por conta de sua raça, sofrem duplamente e estão fadadas aos serviços de menor importância. “Ela (a mulher negra) vai estar na cozinha, servindo café, na limpeza do batalhão. Sempre atrás, sempre em espaços e cargos de menor importância e menor visibilidade.”  

Major Denice, mulher negra policial militar, superintendente de Prevenção à Violência da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) e mestre em Desenvolvimento Territorial e Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia/CIAGS, teve uma experiência diferente. Em entrevista ao jornal El País, publicada em março de 2021, ela diz ser comum, por exemplo, que as mulheres brancas trabalhem em gabinetes e escritórios, enquanto as negras se arriscam nas ruas.  

 “Se todas temos que comprovar todo o tempo nossa capacidade técnica, nós negras temos que provar também nossa capacidade social”

Segundo ela, restam duas opções para a mulher negra. A primeira delas é o papel de “Tia Nastácia", definida por Monteiro Lobato como “negra de estimação” em “Reinações de Naririzinho”. A personagem é uma representação do estereótipo conhecido como Mammy, uma caricatura racial presente em diversas produções culturais. A segunda opção é o lugar da “Globeleza”, em que a mulher negra é hiperssexualizada. “Somos as que suportam mais dor, somos as mais fortes, e inferiores cognitivamente. O lugar das mulheres negras é onde a força é mais necessária do que a beleza.” 

Marta concluiu algo parecido depois de conversar com diversas policiais militares femininas para a pesquisa “A ‘raça’ da mulher negra na Polícia Militar do Rio de Janeiro”. Uma de suas interlocutoras contou que havia sido escalada para receber certa autoridade no aeroporto junto com outras duas policiais negras. De repente, todas elas foram mandadas de volta para o batalhão. O comandante não queria “enfeiar” a recepção. 

Ele disse: “Por que você escalou essas policiais? Vai chegar autoridade e vai ver essas policiais pretas. Isso vai enfeiar a recepção”. Então, elas foram tiradas da escala. “Recepcionar uma autoridade? Uma mulher negra?”, relembra Marta com sarcasmo. Ela diz que a fala de sua interlocutora transmite isso: tinham que ser mulheres, belas, brancas, para não só recepcionar. “Denota mais que um serviço de policial militar. Recepcionar, mas também havia um depois. De repente, recepcionar até depois.” 

As regras de aparência e código de vestimenta, da mesma forma, não foram feitas para contemplar a mulher negra dentro das instituições militares. A mulher militar deve estar sempre com o cabelo preso em um coque, sem fios rebeldes. Só que o fio de cabelo da mulher negra, do cabelo crespo, não é igual ao fio de cabelo liso. Enquanto mulheres brancas usavam penteados como rabo de cavalo e até franjas, Marta foi confrontada por um superior: “Se o seu cabelo não fica, você raspa a cabeça, porque eu quero ele dentro do padrão”. 

Depois de questionado, Marta diz que ele respondeu da seguinte forma: “Quando você vai consertar essa bosta? Quando você vai consertar essa coisa aí, que é o seu cabelo? Pra mim, isso não presta. Amanhã eu quero raspado ou liso, sem nenhum fio para fora”. Sem conseguir resolver, ela acabou levando uma punição. “Eu não sabia e faltei a punição, que era o pernoite. A punição se transformou em quatro dias de detenção", conta. 

 

Para ela, o racismo na Polícia Militar do Rio de Janeiro é uma das “coisas que saem na urina”, ações recorrentes e naturalizadas.

A Polícia Militar como caminho até a ascensão social

Em março de 1982, foi iniciada a primeira turma de mulheres soldados da PMERJ, na época com 158 integrantes. Agora, no estado do Rio de Janeiro, são 43.881 policiais da ativa, sendo 38.938 homens e 4.943 mulheres. O efetivo da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro é fixado, por lei, em 60.471 policiais. 

 

No Brasil, apenas 11% do efetivo das polícias militares é formado por mulheres, que somam 46.220 policiais. Os dados são da Pesquisa Perfil das Instituições de Segurança Pública, realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. 

 

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica, por outro lado, que parte significativa do efetivo da Polícia Militar brasileira está entre homens negros (44,9%, contra 53% de policiais brancos). São trabalhadores, muitas vezes, recrutados dentro da comunidade.

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Marta ingressou na primeira turma de cabos especialistas da saúde da Polícia Militar em 13 de março de 1991. Ela tinha uma filha pequena, de seis meses, e estava recém operada do rim. Jamais havia pensado em entrar na Polícia Militar, mas precisava de um emprego. Por conta da juventude, período em que foi militante do Partido dos Trabalhadores, sequer se identificava com a corporação. “A gente, do movimento estudantil, cansou de correr da polícia.”

 

Ela lembra especialmente de uma passeata organizada pelos estudantes. “Nós fomos andando até o Palácio Guanabara para falar com o governador. Eu só lembro que invadimos o metrô e a polícia estava lá esperando a gente. Quando cheguei em casa, minha mãe me perguntou se eu estava na escola pela manhã. Eu respondi que estava com uns colegas e ela disse :‘Não estava nada, eu vi você em uma passeata e a polícia estava correndo atrás de você’. Apanhei bastante.”

Assim como Marta, Denice não ingressou na Polícia Militar por amor ou vocação. Em 1989, abriu o primeiro concurso da história da corporação. Ela estava concluindo o ensino médio e também procurava um emprego. “O que era apenas uma oportunidade passou a ser paixão no dia 30 de abril de 1990, quando ingressei na Polícia Militar do Estado da Bahia.”

 

As duas concordam que as instituições militares são como trampolins e representam uma possibilidade de ascensão social. Na Polícia Militar, uma mulher não ganha menos do que um homem, por exemplo. O homem negro não recebe um salário inferior ao de um homem branco da mesma patente. “O negro enxerga a instituição militar como um canal de ascensão muito mais viável", afirma Marta. "Eu tenho interlocutoras que, antes de entrar para a Polícia, eram empregadas domésticas e ganhavam muito pouco. A Polícia foi um canal de ascensão. Mas isso vai só até a segunda página”, finaliza.

 “Na instituição militar, a pessoa negra pode até chegar ao oficialato, mas nunca será considerada como igual a uma pessoa branca”

“Há um contexto. O espaço não é o mesmo. O espaço para o branco não é o mesmo espaço para o negro. A ascensão tem um limite: ela vai até onde me permitem. Mesmo eu tendo chegado ao oficialato, existe um limite, porque eu tenho um lugar e daqui eu não passo”, diz Marta. 

 

Denice diz que a colocação de Marta foi “precisa e absoluta”. Durante a infância, ela costumava ouvir de colegas e parentes que deveria se casar com um homem branco para “limpar a barriga”. O que parecia brincadeira de criança era, na verdade, a negação de sua cor, de sua origem e da possibilidade de sonhar. “Para elas, ter um filho negro seria ver se repetir tudo o que viveram. E não importa o quanto você ascendeu profissionalmente. Mesmo que você suba de classe, você sempre será uma pessoa negra”, comenta. 

Autodeclaração e autopertencimento

Pesquisando, Marta encontrou das mais diversas classificações nas fichas de autodeclaração das policiais. “Eu vi morena, eu vi parda, eu vi morena escura, eu vi mulata — que não é cor, mulata é uma palavra ligada à corporificação da mulher. Eu vi mais de dez classificações, até onde eu fui.”

 

Ela diz que a democracia racial, da qual tanto falam no Brasil, é desmentida pela experiência. Não é à toa que uma mulher preta tem vergonha de dizer que é preta. “A gente cresceu ouvindo que é parda, mulata, mas não preta. Então, se eu não sou preta, eu sou tudo. Se não tem preto, não tem racismo. Dizem que não tem discriminação contra a mulher, porque ela está em todos os espaços. Ela está em todos os espaços sabe ela como. Sabe o que ela ouviu para estar ali e continua ouvindo. ” 

 

Não havia ficha de autodeclaração na década de 1990, quando Marta ingressou na corporação. Anos mais tarde, passou a ter, mas ainda faltam dados e é muito difícil estudar raça dentro da Polícia Militar. “A dificuldade da mulher se auto pertencer e se identificar como negra é muito grande. É uma questão estrutural. Não sou preta, sou mestiça. A questão da autodeclaração é muito significativa para que os dados sejam ocultados. Ela não se pertence, não se enxerga. Porque ela não quer viver todas as mazelas que a mãe, a avó e a tia passaram. Se é facultado a ela ser parda, mulata ou morena, isso é melhor para ela do que ser preta. Tudo isso deslegitima o seu pertencimento. Hoje isso mudou. E essa mudança me encanta.”

Com a palavra, Marta

Eu nunca tive problemas com a Polícia. Eu entrei para a Polícia com 22 anos. Na minha juventude, final da adolescência, eu sempre gostei muito de política. Eu era militante do PT (Partido dos Trabalhadores). Eu sempre gostei de me envolver em questões políticas. Conheci o Lula ainda na campanha, na passeata da Candelária. Era “PT roxa”. Fazia parte de movimento estudantil, participei da Passeata Pela Meia Passagem, fui ao Palácio do Governo falar com o Brizola... Corria da Polícia, lógico. Eu sempre gostei disso. Até hoje, eu gosto. Me envolvo de vez em quando. E por isso eu não tinha muita afinidade com a Polícia Militar. 

 

Quando eu me vi no primeiro dia na Polícia, eu me assustei. O recrutamento foi muito rápido. Era o que se abriu para mim. E quando eu me vi, eu me perguntei: “Gente, o que eu estou fazendo aqui? Eu sou Polícia Militar do Rio de Janeiro”. Foi um baque, caiu a ficha, porque era sobrevivência. A militância foi para o segundo plano. Afinidade com a polícia não era a minha praia.

 

É aquilo, né, existem caminhos que não se encontram. Por mais que você tente se adequar, é difícil. A militância foi um particular meu. Hoje, eu tenho problemas com a questão de policiais entrarem na política. Tenho algumas reservas, não é que eu ache que não possa ter. Quando eu entrei para a polícia, lógico que alguns colegas me rechaçaram. O ser policial militar vai de encontro a várias questões sociais. Eu sou militante dos Direitos Humanos, eu sou assistente social. Então, por ser policial militar, eu tenho alguns embates nessa área. Foi complicado para mim, mas não foi complicado para mim só pelos outros. Eu me cobrava. Tempos depois, eu fui voltar às minhas origens e a entender o porquê eu estava na Polícia. A minha essência não havia mudado, mas não dava para ser mais como era antes. Não dava mais para adequar ser policial militar com ser militante, com ser petista, ir para passeata, estar envolvida com a política e ser pré-candidata à vereadora, como eu fui. São coisas que não dá mais para juntar.

 

Eu me chamo Marta Maria de Andrade Gomes. Pode me chamar de Marta Maria Gomes, 52 anos, faço 53 no mês que vem, em julho. Nasci na cidade do Rio de Janeiro, sou carioca da gema e moro aqui até hoje. Tenho uma filhota de 30 anos. Fui mãe solo. Criei a minha filha graças ao meu trabalho na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Sempre gostei muito de estudar, sou pós-graduada e tenho duas especializações. Sou assistente social, adoro escrever. Enfim, gosto de viver. 

 

Apesar de todos os embates que a vida colocou para mim, que ela coloca para a gente, ser mulher negra para mim é um privilégio. Apesar dos limites que me impõem, eu conquistei espaços que nunca imaginei conquistar. Então, sou muito feliz e grata, por incrível que pareça, à PMERJ. Sou uma sobrevivente. Com 31 anos de Polícia Militar, eu sou sobrevivente. Eu aprendi muito. Depois de completar 26 anos na Polícia, eu fui buscar na pesquisa o que era de fato a Polícia Militar. Eu aprendi quem eram essas mulheres e homens. Tratei muitos policiais ao longo da vida. Conheço essa instituição como a palma da minha mão. O meu sonho pode parecer utopia, mas quero que esse quadro mude. É um sonho: que a Polícia seja realmente para servir e proteger o cidadão branco, preto, pobre, gay, favelado, em toda e qualquer circunstância. E a minha luta é para isso mesmo: para a mudança de paradigma, para a mudança desse quadro. Só se metendo, só pesquisando, para a gente conseguir mudar.

© 2023 por Jéssica Couto. Criado orgulhosamente com Wix.com

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